Não-monogamia e Bissexualidade


O Brasil é um país racista, misógino e atualmente governado por um presidente autodeclarado LGBTfóbico. Tendo isso nítido, é importante ainda localizar o Brasil como um país que se encontra num tempo/espaço de pós-golpe de Estado. Duplo. Em 2016, com a derrubada no meio do segundo mandato da primeira presidenta mulher eleita, Não-monogamia e bissexualidade


“O sistema que impõe a monogamia como o único modelo possível de relação, ou como um modelo superior aos demais, não nos abarca pois ele impõe um único e rígido padrão aos afetos.”


Em setembro de 2021 foi lançado o Manifesto Bissexual Brasileiro, escrito por diversas pessoas envolvidas com o movimento bissexual, ele é um documento que apresenta visões políticas sobre a bissexualidade, demandas das pessoas bissexuais e celebra nossa sexualidade. Ao escrever o manifesto buscamos ampliar os debates em torno da bissexualidade, entendendo-a como modo de ser e estar no mundo, e por isso abordamos também questões que à primeira vista não parecem ter relação direta com ela.


No último parágrafo do manifesto incluímos a crítica à monogamia. Mas o que isso tem a ver com a bissexualidade em si? Por qual motivo o movimento bissexual precisa se preocupar com algo que parece ser tão pessoal?


O primeiro ponto que precisamos discutir é que falamos em monogamia aqui como parte de um sistema que sustenta e organiza a sociedade em que vivemos, algo que intrinsecamente cria uma hierarquia que ordena certas pessoas como mais importantes que outras. Isso quer dizer que a monogamia não existe sozinha e não está ligada apenas à exclusividade sexual: ela é a forma de relacionamento sexual e afetivo considerada a mais correta na nossa sociedade, a que está legitimada não apenas na cultura como também em nossos códigos jurídicos.


Apesar de diversas obras modernas, como séries e livros, abordarem personagens que se relacionam com mais de uma pessoa (mesmo que a representação nem sempre seja positiva), o fato de três pessoas trocarem afeto entre si em rede nacional chocou muitos. Na atual edição do Big Brother Brasil, foi possível testemunhar, durante uma das várias festas, a proximidade que as participantes Maria, Eliezer e Lina tiveram umas com as outras, trocando beijos apaixonados em momentos separados e, às vezes, juntos. Eclodiram então as reações nas redes sociais de um puritanismo estranhíssimo, mesmo que três pessoas adultas tenham decidido trocar beijos entre si com a frequência que bem desejaram.


Como se não bastasse, no dia seguinte, outros participantes tentaram diminuir o afeto que aconteceu, apagando a bissexualidade de Maria e pintando-a apenas como atraída para Eliezer. Isso aconteceu mesmo que a própria Maria insistisse em manter Lina no triângulo afetivo, o que não apenas denuncia a bifobia dos outros participantes, como a mais velada das transfobias: tirar Linn da Quebrada, travesti, como um ser digno de afeto, seja ele duradouro ou passageiro. Percebe-se que, por muitas vezes, o ataque à não-monogamia resvala na bifobia e na transfobia, ditando precisamente que tipos de pessoas têm direito ao afeto. Partindo disso, a necessidade de uma hierarquia do afeto perpassa pelo racismo, pelo machismo, enquadrando-se firmemente dentro do capitalismo e permitindo que mais opressões aconteçam.


Engana-se quem pensa que a visão negativa da não-monogamia afeta apenas com quantas pessoas podemos nos relacionar. Como a não-monogamia é uma quebra da noção da família nuclear (Pai, Mãe, Filhos, em ordem de importância), por inúmeras vezes a pessoa não-mono, caso tenha filhes, tem a qualidade da sua maternidade ou paternidade questionada, como se a escolha afetiva pessoal implicasse diretamente em quão boa mãe, ou pai, você é. É mãe, saiu com uma namorada, curtiu e depois voltou para a casa onde o marido já alimentou e botou as crianças para dormir? A noção monogâmica imediatamente invalida a qualidade desta mãe, mesmo que, supostamente, uma análise similar de uma mãe saindo com as amigas para curtir e depois voltar para a casa da mesma forma, seria bem vista pelo setor mais progressista da sociedade. Infelizmente, não é o que acontece com pessoas em relacionamentos não-monogâmicos.


Ora, se compreendemos que existe a necessidade da emancipação do ser pessoal enquanto ser livre para se relacionar com quem quiser, trabalhar como quiser, criar as crianças como quiser sem que haja impedimento da pessoa com quem nos relacionamos, por que há tanta agressividade na ideia de que o mesmo possa acontecer noutras configurações de relacionamentos? Ter mais de um relacionamento, ter um casamento com múltiplas pessoas, ou mesmo uma relação aberta sem expectativa de amarras não define o caráter de quem é pai, mãe ou cuidador, tampouco sua qualidade.


O que espera-se de uma pessoa que tenha filhes é que ela priorize sua criação e segurança, e isso pode envolver diversas questões: meu trabalho é o bastante para garantir a saúde e segurança que desejo? Minha relação com as crianças é emocionalmente saudável? Sou capaz de ter uma vida social sem comprometer a criação de meus filhes? Se é digno pensarmos na disparidade entre a visão social que o “pai solteiro” tem de vantagem contra a costumeira vivência da mãe solo, e entendermos que ela é extremamente injusta e assegurada por diversas opressões, por que parece ser permitido que se questione o caráter de pais, mães e cuidadores que possam assegurar sua vida afetiva (múltipla) mesmo sem negligenciar as responsabilidades parentais?


Estas provocações partem de uma visão em que uma ou duas pessoas tem total responsabilidade pelas crianças, mas não esqueçamos do famoso provérbio africano: “É preciso uma aldeia para educar uma criança”. O múltiplo, o mais de um, não é uma ameaça, seja para o afeto sexual e romântico, seja para o afeto maternal e paternal.


Existe um estereótipo muito comum sobre bissexualidade que liga nossa sexualidade à não-monogamia, como se fossem indissociáveis. Essa ligação umbilical não faz sentido, porém tanto a bissexualidade quanto a não monogamia tocam em um ponto importante sobre a multiplicidade. A sociedade em que vivemos está sempre em busca do um, do único, do igual, aquilo que traz a diferença e a multiplicidade é rapidamente colocado em um espaço marginalizado de exclusão. Nem toda pessoa bissexual é não-monogâmica, e nem toda pessoa não-monogâmica é bissexual, mas precisamos fazer ligações entre as duas para compreender mais profundamente o mundo em que vivemos e como podemos transformá-lo.


Enquanto bissexuais precisamos compreender as opressões que sofremos, e as estruturas que dão sustentação a elas. O sistema monogâmico precisa da bifobia para permanecer de pé, para se manter como único ele precisa marginalizar aquilo que traria para dentro dele uma forma de multiplicidade. Questionar esse sistema, pensar não-monogamia e bissexualidade lado a lado com suas similaridades e diferenças, traz possibilidades reais de transformar nossa realidade e construir uma outra forma de vida onde a multiplicidade possa florescer e possamos todes ser mais.


“Sou piranha, sou bissexual, e sou feliz!” foi o que Maria gritou após beijar Lina e Eliezer dentro do BBB. Precisamos olhar para esse grito sem os moralismos que permeiam nossa sociedade e que ditam que a multiplicidade de afetos é ruim, errada, suja. Podemos ser piranhas, bissexuais e felizes, pois ser mais não é algo negativo. Ser mais é também uma potência de transformação.


Por Frente Bissexual Brasileira


Brasil, 21 de fevereiro de 2022